MATERNIZAÇÃO

Quando era mais nova queria ter doze filhos. Planejei começar aos dezessete anos. Tinha também outros planos: viajar pelo mundo por tempo indeterminado, aprender todas as línguas, inventar algo importante e salvar alguma espécie ameaçada. Não fiz nada disso. Não ainda...

Acabei fazendo tudo conforme o protocolo. Comecei a namorar aos 18 e casei aos 23 com meu único namorado. Apesar da minha enorme vontade de ser mãe, tive que esperar ainda alguns anos, pois, como a maioria das mulheres sabe, para o marido o momento adequado para maternidade é sempre o próximo após ele terminar o que planejou fazer logo em seguida. Aos meus 26, definitivamente, não dava mais pra esperar... e entre significativas mudanças de vida, recebemos a pequena e profunda Maira.

O nome não foi nem fácil nem difícil de escolher. Apesar de nunca termos pensado, ouvido ou visto alguém que se chamasse Maira, pareceu óbvio que esse seria o nome dela. Nem todo mundo aplaudiu. A gestação foi tranquila, bonita, feliz. Eu me preparei muito, planejei tudo. Quarenta semanas depois ela chegou por uma cesárea que não planejei.

Depois de toda aquela espera, surgiu ela. Uma coisinha cabeluda e de olhos brilhantes que parecia capaz de entender bem mais do que podia expressar. Se já a amava antes, quando a vi percebi que tinha preenchido um buraco que carregava toda a vida.

Fiquei encantada com aquele bebê calmo e de fácil manejo, perfeito para pais de primeira viagem, que até cursinho de puericultura haviam feito com louvor.

 É interessante como, mesmo os pais estando preparados, é demorado se adaptar a esses novos seres que se materializam na vida da gente. Num “clic” e temos de satisfazer 3.645kg de solicitações, 50cm de necessidades. Nunca reclamei. Cada dia era uma nova descoberta. Era bom passar o tempo observando, entendendo, aprendendo.

 Aos poucos você começa a se ajustar. Ter sono vira parte da rotina, sobrando tempo você come o prato frio do almoço ou, quem sabe, se der sorte, consegue tomar aquele banho. Isso é o que você é agora. E passada a pior parte, de rachaduras, vômitos, cólicas e um pouco de desespero, viramos mães e pais daquele bebê. Começamos a decifrar grunhidos, identificar tipos de choros e nos sentimos quase heróis desvendando os pequenos enigmas do dia a dia. Ficamos mais seguros e observadores daquele micro ser que, apesar do tamanho, da fragilidade, parece ter vindo com algum propósito.

A Maira sempre pareceu uma menina feliz, mas, talvez, não com as felicidades que se espera. Não é de amores escancarados, nem de saudades reveladas. Vem quando quer, na hora que quer. Você não pode exigir amor dela, mas ela vai dar incondicionalmente a você, se ela quiser. Desde pequena ela parece ter um certo mistério, uma energia que agrega as pessoas a sua volta, uma tranquilidade de quem sabe, mas não precisa contar. Gosta de coisas incomuns, se interessa profundamente por música, por dança, por arte, por história, pelo passado e pelo futuro. Se dedica a tudo que faz até conseguir o que planejou conquistar. Não faz melhores amigos, divide o tempo com pessoas diferentes e acha que todos têm algo de interessante. Nunca entra em conflitos, não foge, nem enfrenta, apenas observa. Tem conversas profundas, tão profundas que nos faz questionar. Nunca brinca de coisas comuns. É uma artista e inventora, tudo nela é arte, desafio e imaginação. Tem muita habilidade com as palavras, com os números, com riscados. Entende como as coisas funcionam de maneira instintiva e pode enxergar qualquer coisa, de qualquer perspectiva. Sempre tem algo inusitado a comentar sobre fatos ou situações. É pertinente e às vezes até sarcástica.

Conforme ela foi crescendo, fomos nos identificando mais e mais com nossa nova atividade. A essa altura, Maira com quatro anos, e mesmo diante da desafiante personalidade dela, nossa vida era mais calma e eu já podia dizer que sabia ser mãe e compreendia bem o funcionamento das coisas.

 Aos três anos e meio Maira pediu de aniversário um bebê de verdade. Claro que queríamos outro filho. O difícil era decidir quando. Quando engravidei de novo, as pessoas perguntavam, vocês planejaram? E o meu marido respondia: ela sim, eu me fiz de bobo. Foi mais ou menos assim, mesmo. Quando engravidei fiquei feliz. Nós dois ficamos. Nós três, na verdade. A Maira achava que seria menina. Tinha escolhido até o nome: Isabela. Explicamos que não tinha como saber. Mas ela estava decidida a ter uma irmã.

 No dia que descobrimos que era um menino, Maira chorou. Queria que devolvêssemos e fizéssemos outro bebê, dessa vez o certo. Depois se resignou. O marido vibrou, fingindo que tanto fazia o sexo do bebê, mas que maravilha ter um menino! Eu nem sei... Confesso que fiquei um pouco balançada. Eu sabia ser mãe me menina. Me achava boa nisso. Mas menino? Talvez não soubesse o que fazer, como cuidar, o que esperar...

E então me vi grávida de um menino. A gravidez foi tão tranquila quanto a primeira, exceto porque não tinha nenhum tempo, já que estava sempre ocupada e preocupada com a Maira. Não conseguia ter conversinhas com a barriga como da primeira vez, me sentia estranha e desconfortável e, ao mesmo tempo, culpada. Não sabia se ia conseguir amar outra pessoa. A Maira ocupava todo meu coração e começava a pensar se isso ia mesmo dar certo. E me sentia culpada outra vez. Também tentava lembrar, para me tranquilizar, de como tinha sido a primeira vez, como tive um bebê tranquilo, calmo e que, certamente, poderia lidar com isso.

Se na primeira gravidez fiquei enorme, nessa fiquei imensa! Senti a Maira se mexer com 17 semanas, agora sentia tudo com 14. Nos últimos dois meses de gestação, não dormi. A barriga era tão grande que inviabilizava qualquer posição. Deitava em um “puff” na sala. Pra sair dele tinha que rolar no chão e me agarrar em coisas para conseguir ficar em pé. Mesmo assim, até o último dia, carreguei minha filha apoiada no quadril, subindo e descendo escadas para desespero da minha mãe, que reclamava em vão.

Apesar das minhas dúvidas, do medo, do estranhamento, eu estava feliz. O bebê também parecia estar. Ele se mexia tanto e era tão forte que, mesmo que eu quisesse, não poderia me esquecer que logo ele chegaria.

O nome que escolhemos também foi diferente do que imaginei. Pensei em Gabriel. O pai queria João. Eu queria escolher logo. Sempre achei que o nome me ajudaria a ter mais contato com o bebê, falar com ele, coisas assim. Então meu marido disse: vamos chamar de João Gabriel. Nome duplo? Nunca pensei que teria um filho com dois nomes. Gosto de coisas simples, de poucas letras. De qualquer forma, aceitei. Era um nome. Eu ia me acostumar. Dois nome bonitos, só que juntos. Todo mundo aprovou, diferente da polêmica do nome da Maira, mas não tinha jeito de eu chamar o menino. Nem apelido, não sabia que cara tinha! Mas assim foi indo... e passou num salto.

No dia do nascimento, exatas 40 semanas de gestação, como a irmã, sem sinal de trabalho de parto, como a irmã, bastante dor e suspeita de um bebê de tamanho considerável, chegou ao fim minha segunda gravidez.

Estava feliz, ansiosa e um pouco decepcionada, pois apesar do meu preparo e vontade, não teria novamente um parto normal. Tentei pensar positivo e, afinal, o importante era que ficasse tudo bem com ele e comigo. Mas o pior, que me deixava em pânico, era ter de deixar a Maira pela primeira vez. Ela ficaria bem com os avós, mas ficaria SEM MIM, e isso era apavorante. E se ela se sentisse rejeitada? Se ela me quisesse e eu não pudesse atender porque estava com o irmão? E se ela achasse que não a amávamos mais porque tínhamos escolhido estar, nós três, sem ela? Eu conversei muito com ela, mas estava tão preocupada que isso parecia até mais importante que ter o outro bebê. Essa preocupação parece estranha, mas grávidas são estranhas. Um dia até chorei porque o Marido criticou o ponto da minha calda de chocolate na frente de pessoas desconhecidas (sim, chorei na frente dessas pessoas).

Nos preparamos, estava tudo bem, até meu marido passar mal e dar uma desmaiadinha enquanto me colocavam o soro. Depois disso, João Gabriel nasceu. Quando me disseram o peso, eu chorei: 4.645kg, 54 cm. Grande, forte, saudável. Eu me sentia estranha, queria olhar pra ele, pegar e ver o que iria sentir.

A primeira vez que vi a Maira senti uma emoção que não posso descrever. Eu mal podia olhar, chorava compulsivamente. Ela era tudo, era minha. Quando João nasceu, chorei de alívio, porque era grande e tinha uma circular de cordão, mas nasceu bem. E porque não aguentava mais estar grávida.

Pensando bem, essa foi a única hora que me esqueci da Maira e pensei só nele. Quando eu olhei aquele bebê enorme, encerado e meio roxo, o tempo parou por alguns segundos. Olhei profundamente nos olhos grandes e escuros e tive a maior sensação de reconhecimento da minha vida. Não amor, exatamente, eu simplesmente sabia quem ele era.

Levaram o bebê e eu fiquei ali parada, sendo costurada, tentando entender o que era aquilo. Meu coração batia de um jeito esquisito. Demoraram demais a me devolver o bebê, eu precisava olhar de novo, por mais tempo. Mas ele era grande, a roupa não servia, tinham que medir glicose e mostrar na janelinha da maternidade. Esperei séculos até que me devolvessem. Quando enfim chegou, o abracei tão forte quanto podia e ele mamou imediatamente. Era noite e eu nem conseguia dormir. Fomos pro quarto e eu me lembrei da Maira, minha filha, companheira, meu amor.

Passei a noite abraçada àquele bebezão, que não precisou chorar nenhuma vez. Estava quente, alimentado e feliz. No dia seguinte Maira chegou. Quando eu olhei pra ela, fiquei confusa, não estava entendendo como era possível que ela tivesse crescido tanto! Era uma menina, não um bebê... Mas há dois dias ela estava no meu colo! Ela olhou o irmão e o amou imediatamente. Ele era dela. E eu me senti aliviada.

O tempo passou e demorou umas duas semanas até que eu, de verdade, tivesse naturalidade pra chamar João Gabriel pelo nome. Tudo estava funcionando bem. Íamos nos entendendo a cada dia. A Maira, que era o meu tudo, repentinamente, começou a "atrapalhar". Eu não tinha tempo. E ela sentiu isso. Eu me esforçava muito, muito mesmo, mas às vezes era inevitável me sentir assim. Procurava compensar com momentos só nossos, mas eu só queria estar com o bebê! E morria de culpa. Isso durou um longo mês.

Um dia acordei e me senti bem. Foi um dia estranho porque eu me lembro dele. Não aconteceu nada demais, apenas a sensação de que cada coisa estava em seu lugar.

João Gabriel foi crescendo, foi ganhando apelidos, foi desenvolvendo sua personalidade. E é quase inacreditável como duas pessoas podem ser tão diferentes.

Enquanto a Maira dormia bem, Gabi achava que deveria mamar a cada hora até seus dez meses. Não aceitava mamadeira nem pra tomar água. Nenhum leite, nada. Apenas eu. Nessa época eu estava bem. Tinha me organizado e conseguia conviver com a minha nova vida de zumbi. Era bom acordar e olhar pra ele. Não importava a hora que ele acordasse, ele parecia feliz, descontente com algo em particular, mas feliz. Eu sempre sorria ao olhar pra ele nas madrugadas. João Gabriel não tinha ideia de como eu andava cansada e também não se importava, apenas queria que eu estivesse ali.

Quando João Gabriel tinha cinco meses, passamos por uma situação muito triste na família. Um bebê muito esperado cumpriu sua missão na terra e se foi mais rápido do que pudemos entender. Todos sofreram. Durante todo o tempo que estive envolvida com isso, Gabi estava comigo. Quando meu leite diminuiu, ele começou a comer. Quando eu chorei, ele colocou a mão no meu rosto e sorriu. Durante os seis meses seguintes eu não fiz mais nada, além de olhar para os meus filhos, especialmente para ele. Passei algumas noites assim. A cada febre, virose ou machucado, eu tremia. Quando Gabi estava com quase um ano, retomei as atividades negligenciadas do trabalho.

Ele começou a falar tão cedo quanto a irmã. Aos sete meses dizia mamãe. Com um ano e meio dizia frases complexas, explicava situações e fazia perguntas.

Toda vez que penso no João Gabriel, a primeira coisa que me vem a cabeça é LUZ. Se eu fechar os olhos até posso ver. Por onde ele passa parece que deixa pó de estrelas.

Ele nasceu para as pessoas. Por elas e para elas. A humanidade encanta o João, até mais que a natureza. Tem pleno interesse pelo que as pessoas são, fazem, pensam. Estabelece diálogos com todo tipo de gente, de qualquer idade, etnia, profissão. Ele se comunica com qualquer um que cruzar o seu caminho. É comum que as pessoas parem para ver o João. Toquem nos cabelos dele, puxem conversa, mas quando isso não acontece, ele mesmo providencia. Deixar o João solto por alguns minutos te faz interagir com outras pessoas. Geralmente ele se apresenta, nos apresenta e pede que cada um também o faça. Ele sorri e te desarma.

João também tem histórias fantásticas. De outros mundos, de outras vidas, de seres alados. Não há como ter medo das histórias do João. Elas têm cores, lugares, presenças.

Música também faz parte dele. E a dança. Autodidata, luta capoeira sozinho, compõe músicas, estuda línguas e as letras, procura entender tudo a seu alcance. Ele ainda não fez três anos. Beija, abraça e faz declarações. Pula, corre, vira super-herói, salva o mundo. Depois se aninha e dorme. É democrático, divide amores e não descontenta ninguém. É muito como eu, mas totalmente diferente.

João é todo pra fora. É alma transbordante.

A Maira é olhar. Profunda. Etérea.

Com eles aprendi que quando você tem filhos, o tempo não obedece mais o relógio. E não há um tipo certo de mãe, nem de filho. Não há formula para educar e você sempre erra alguma coisa. Também descobri na marra, que ser mãe é lidar com a culpa e com ausências. A maternização é um processo e às vezes demora. A relação, como todas, é construída com tempo e muita paciência – e paciência é algo que se você não tem, fabrica.

Entendi que você consegue amar dois ou mais filhos, e não precisa ser da mesma forma e nem pelos mesmos motivos e que eles nunca serão perfeitos. Nem nós.

Aceitei que “nãos” são necessários e que carinho e disciplina andam juntos, mas que você pode escolher as batalhas. E que por mais que você queira ajudar e sofra quando seu filho erra ou chora, às vezes, ele precisa se virar sozinho para poder crescer.

Estamos acostumados a ouvir sobre as felicidades da maternidade, mas fui descobrindo que você não precisa estar ou parecer feliz o tempo todo, todas as mães e pais passam pelas mesmas coisas, e também se sentem sós. Conversar ajuda muito. Além disso a felicidade de uma família pode estar em fazer um bolo no final de semana. Ninguém precisa ser demais o tempo todo.

Aos 34 anos, não tenho mais tempo nem vontade de completar minha utópica dúzia de rebentos.

Ainda que esteja apenas somente na primeira etapa da vida dos meus filhos, por mais que erre, tenha dúvidas e aflições, já me sinto mais capaz e forte como mãe. Também me sinto extremamente responsável por essas vidas e com uma grande e longa missão. Como ainda não sei bem qual é, vou seguindo nessa jornada, às vezes certa, às vezes desajeitada, por vezes plena, por vezes partida, tentando fazer o melhor para criar e aprender com esses dois seres de olhar profundo e alma grande que me foram designados.


Texto: Mariana Faria Corrêa

Comentários

Luiza disse…
Uma enorme profundidade de alma está refletida neste texto. Acredito que a presença positiva da mãe, assim como a do pai, tem tudo para a formação de seres com possibilidades plenas e que se desenvolvam e cresçam com qualidades, habilidades e sutilezas. Que, sempre imbuída deste amor múltiplo e infinito, você os os dirija à realização dos seus sonhos.

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