DIA A DIA, LADO A LADO

Texto: Mariana Faria-Corrêa
Imagem da internet

(baseado na canção de Marcelo Jeneci - http://letras.mus.br/marcelo-jeneci/1834894/)

Era quase dia. Ele não havia se dado conta da hora. Estava assim há algum tempo, perdia-se nos pensamentos e nas lembranças. Dentro do apartamento uma fresta de luz entrava pela persiana quebrada. Um cheiro azedo tomava conta do ambiente. Ele não se lembrava da última vez que tinha comido, espalhadas pela sala apenas algumas garrafas de vinho. Sentia-se cansado, até mais do que isso. O silêncio da noite o atormentava, nessa hora seus pensamentos pareciam estar altos demais. Tentava parar de lembrar, de pensar, de olhar. Nas mãos, uma foto amassada e um pouco úmida por causa do suor. Há duas semanas havia música e cor naquela sala.

Mal se viu sozinho, tropeçou nos sapatos dela. Quis abrir o armário e verificar que suas coisas ainda estavam ali, mas não fez.

Nos dias que se seguiram ao dia em que ela se foi, ele adormecia olhando para a porta de entrada, jogado no sofá, por alguns instantes durante o dia, quando os barulhos da vida dos outros entravam pela janela.

Ouvia passos na cozinha. A torneira que abria e fechava, o cheiro do seu cozido favorito. Estava exatamente ali, naquele sofá, olhando sem que ela percebesse. Como em outro tempo, lado a lado, quando ainda eram jovens, ele e sua dama de saia rodada até os joelhos. Depois giravam abraçados muitas vezes ao som de uma música qualquer. Sentia o cheiro dela, o calor dos cabelos e algo como um sorriso no estômago.

Então acordava. Estava no mesmo lugar, suado, coração palpitante e um tremor incômodo de quem despertou no meio de um sonho ruim. Não tentava se recompor. Limitava-se a permanecer ali, mas com os olhos abertos.

No dia em que ela se foi, ele tentou não chorar, tentou não gritar, nem explodir. Ele se partiu por dentro. Se enfiou no primeiro canto que lhe pareceu conveniente.

Alguns amigos telefonavam. Diziam que era natural, ela lá, ele aqui, ele iria se acostumar, um dia iriam se reencontrar. Ele não era ingênuo. Sabia que o pior aconteceria, ela tinha a saúde frágil, já não eram crianças. Mesmo assim não estava preparado. Ele a queria de volta. Olhava fixamente para porta esperando ela chegar.

No dia em que ela se foi, ele se foi também.

Comentários

Luiza disse…
Muito bom e triste também.

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